Minha avó mentiu pra mim. Nunca
imaginei que ela pudesse fazer isso, mas em uma quarta-feira, ela me enganou.
Não apenas a mim, mas a toda a família. Ela disse que viveria até os
cem anos. Ela mentiu. Aos 91, ela serenamente fechou os olhos e não mais os abriu.
Minha irmã ligou, disse que nossa
batchan havia morrido. Não acreditei. Imediatamente, fui até a casa da minha
avó. Fui até lá, na esperança de vê-la sentada em sua poltrona, com as suas
contas de oração nas mãos, deslizando os dedos, que tantas vidas haviam
trazido a este mundo. E falo em vida, não apenas da minha e de todos os filhos,
netos e bisnetos, mas também a vida de tanta gente que ela trouxe como parteira de uma cidadezinha do interior.
Aquelas mesmas mãos, firmes
no caratê, suaves ao piano. Aquelas mesmas mãos que curavam o corpo na precisa
quiropraxia. Aquelas mesmas mãos em prece que curavam a alma em sua fé, não apenas
em uma religião, mas em um Deus que estava em todas as coisas, até em um copo
quebrado em seu altar. Buda, Nossa Senhora de Aparecida, Jesus Cristo, um livro
da Seicho-no-iê, santinhos. “Tudo bom”, minha avó dizia. E agradecia. Agradecia
pelo frescor da chuva, pelo calor do sol, pela melancolia dos dias nublados,
pela alegria dos dias ensolarados. Tudo bom...
Não podia ser verdade que
ela havia ido assim, aos 91 anos. Faltavam ainda nove anos, nos quais eu
poderia me sentar ao seu lado e escrever um livro sobre a sua vida, que
lançaria quando ela completasse cem anos.
Mas não foi assim...
Para tentar antecipar essa
alegria, até dediquei a ela o meu primeiro livro infantil, O pequeno samurai, que
eu havia escrito em 2009, há cinco anos. Em 2010, esse livro conquistou o meu
primeiro contrato de verdade com uma grande editora. Esperei pacientemente (nem tanto), até
que, finalmente, o livro ficou pronto há apenas algumas semanas. A minha editora enviou o
primeiro exemplar. Emocionado, imaginei a minha avó lendo a dedicatória:
Ensaiei como mostraria a
dedicatória a ela. Em um lançamento especial? Como seria? Com festa? Onde? Como?
Talvez no aniversário de 92 anos de minha avó? Eu queria ter dado o livro
quando ela completou 90 anos, mas ele não havia ficado pronto. Tudo bem, eu
ainda teria tempo... Finalmente, com o livro em mãos, pensava: “quando terminar
de dar aulas na minha oficina literária, pensarei melhor sobre
isso”. Mas, exatamente, no último dia de aula, minha avó faleceu...
Fiquei com o livro em minhas
mãos, olhando para a dedicatória que minha avó não viu...
Fiquei com o coração
apertado, triste com a minha batchan, porque ela havia mentido para mim. Ainda
teríamos que ter nove anos, no mínimo, para fazer o lançamento deste e de
outros livros e, principalmente, do livro de sua vida. Uma vida de sobrevivente
de bombardeio, de alguém que enfrentou os golpes da vida, que cedo perdeu o
marido, que criou os filhos com dignidade e amor,
que foi imigrante que chega a uma terra desconhecida, sabendo apenas uma
palavra que usou pela vida inteira: obrigada.
Ao chegar à casa da minha
avó, ela não estava mais lá, em sua poltrona. As contas de oração estavam sobre
a mesa, silenciosas. Minhas lágrimas foram seguidas por um sorriso. Minha tia me
relembrou que aquelas contas, que passaram diariamente pelas mãos de minha avó,
em sua reza diária de agradecimento, haviam sido trazidas por mim, na volta de
minha primeira viagem ao Japão. Como eu poderia ter me esquecido daquilo? E
senti uma gratidão imensa no peito, por saber que ela as havia acariciado por
quinze anos. Senti uma alegria por saber que, de alguma forma, eu havia ficado
perto dela durante todo esse tempo. Mesmo quando eu estava morando em outros
países ou viajando pelo mundo, eu estava perto dela...
As contas de oração estavam
sobre a mesa, não mais nas mãos de minha batchan. Reencontrei-a apenas com as
mãos entrelaçadas, frias. Lembro-me das últimas palavras que minha avó havia me
dito, em japonês, quando ela segurou em minha mão: “suas mãos são tão quentes, ah, gostoso, né”. Coloquei minhas
mãos sobre as da minha avó, tentando aquecê-las. Mas, desta vez, não consegui...
Então, coloquei o livro,
dedicatória e tudo, por debaixo das mãos de minha avó. E eu sei que ela não irá
ler aquele livro. Sei disso, porque ela não aprendeu a ler muito bem o
português. Mas ela reconhecerá as letras que desenham o seu nome, sobre pétalas
de cerejeira. E sei que ela irá sorrir, como sempre...
Minha avó mentiu pra mim.
Ela disse que viveria até os cem anos. Mas não posso ficar magoado por isso. Devo me alegrar, pois a verdade é que ela viverá muito mais. Ela viverá pra sempre,
enquanto o meu e o “pra sempre” de todas as pessoas que ela trouxe à vida durarem...
Arigatô, batchan! Arigatô... para sempre.
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