sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Minha avó mentiu pra mim

Minha avó mentiu pra mim. Nunca imaginei que ela pudesse fazer isso, mas em uma quarta-feira, ela me enganou. Não apenas a mim, mas a toda a família. Ela disse que viveria até os cem anos. Ela mentiu. Aos 91, ela serenamente fechou os olhos e não mais os abriu.
Minha irmã ligou, disse que nossa batchan havia morrido. Não acreditei. Imediatamente, fui até a casa da minha avó. Fui até lá, na esperança de vê-la sentada em sua poltrona, com as suas contas de oração nas mãos, deslizando os dedos, que tantas vidas haviam trazido a este mundo. E falo em vida, não apenas da minha e de todos os filhos, netos e bisnetos, mas também a vida de tanta gente que ela trouxe como parteira de uma cidadezinha do interior. 
Aquelas mesmas mãos, firmes no caratê, suaves ao piano. Aquelas mesmas mãos que curavam o corpo na precisa quiropraxia. Aquelas mesmas mãos em prece que curavam a alma em sua fé, não apenas em uma religião, mas em um Deus que estava em todas as coisas, até em um copo quebrado em seu altar. Buda, Nossa Senhora de Aparecida, Jesus Cristo, um livro da Seicho-no-iê, santinhos. “Tudo bom”, minha avó dizia. E agradecia. Agradecia pelo frescor da chuva, pelo calor do sol, pela melancolia dos dias nublados, pela alegria dos dias ensolarados. Tudo bom...
Não podia ser verdade que ela havia ido assim, aos 91 anos. Faltavam ainda nove anos, nos quais eu poderia me sentar ao seu lado e escrever um livro sobre a sua vida, que lançaria quando ela completasse cem anos.
Mas não foi assim...
Para tentar antecipar essa alegria, até dediquei a ela o meu primeiro livro infantil, O pequeno samurai, que eu havia escrito em 2009, há cinco anos. Em 2010, esse livro conquistou o meu primeiro contrato de verdade com uma grande editora. Esperei pacientemente (nem tanto), até que, finalmente, o livro ficou pronto há apenas algumas semanas. A minha editora enviou o primeiro exemplar. Emocionado, imaginei a minha avó lendo a dedicatória:





Ensaiei como mostraria a dedicatória a ela. Em um lançamento especial? Como seria? Com festa? Onde? Como? Talvez no aniversário de 92 anos de minha avó? Eu queria ter dado o livro quando ela completou 90 anos, mas ele não havia ficado pronto. Tudo bem, eu ainda teria tempo... Finalmente, com o livro em mãos, pensava: “quando terminar de dar aulas na minha oficina literária, pensarei melhor sobre isso”. Mas, exatamente, no último dia de aula, minha avó faleceu...
Fiquei com o livro em minhas mãos, olhando para a dedicatória que minha avó não viu...
Fiquei com o coração apertado, triste com a minha batchan, porque ela havia mentido para mim. Ainda teríamos que ter nove anos, no mínimo, para fazer o lançamento deste e de outros livros e, principalmente, do livro de sua vida. Uma vida de sobrevivente de bombardeio, de alguém que enfrentou os golpes da vida, que cedo perdeu o marido, que criou os filhos com dignidade e amor, que foi imigrante que chega a uma terra desconhecida, sabendo apenas uma palavra que usou pela vida inteira: obrigada.
Ao chegar à casa da minha avó, ela não estava mais lá, em sua poltrona. As contas de oração estavam sobre a mesa, silenciosas. Minhas lágrimas foram seguidas por um sorriso. Minha tia me relembrou que aquelas contas, que passaram diariamente pelas mãos de minha avó, em sua reza diária de agradecimento, haviam sido trazidas por mim, na volta de minha primeira viagem ao Japão. Como eu poderia ter me esquecido daquilo? E senti uma gratidão imensa no peito, por saber que ela as havia acariciado por quinze anos. Senti uma alegria por saber que, de alguma forma, eu havia ficado perto dela durante todo esse tempo. Mesmo quando eu estava morando em outros países ou viajando pelo mundo, eu estava perto dela...
As contas de oração estavam sobre a mesa, não mais nas mãos de minha batchan. Reencontrei-a apenas com as mãos entrelaçadas, frias. Lembro-me das últimas palavras que minha avó havia me dito, em japonês, quando ela segurou em minha mão: “suas mãos são tão quentes, ah, gostoso, né”. Coloquei minhas mãos sobre as da minha avó, tentando aquecê-las. Mas, desta vez, não consegui...
Então, coloquei o livro, dedicatória e tudo, por debaixo das mãos de minha avó. E eu sei que ela não irá ler aquele livro. Sei disso, porque ela não aprendeu a ler muito bem o português. Mas ela reconhecerá as letras que desenham o seu nome, sobre pétalas de cerejeira. E sei que ela irá sorrir, como sempre...
Minha avó mentiu pra mim. Ela disse que viveria até os cem anos. Mas não posso ficar magoado por isso. Devo me alegrar, pois a verdade é que ela viverá muito mais. Ela viverá pra sempre, enquanto o meu e o “pra sempre” de todas as pessoas que ela trouxe à vida durarem...

Arigatô, batchan! Arigatô... para sempre.